|| Água: In(fusão) de estrelas que sacia a sede de paz
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Água: In(fusão) de estrelas que sacia a sede de paz

Água: In(fusão) de estrelas que sacia a sede de paz

“Não deixar ninguém para trás”. Este é o título do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento de Recursos Hídricos 2019 que alerta: 2 bilhões de pessoas não recebem água tratada.

Quem está sendo deixado para trás? Os grupos mais vulneráveis. Pobres, mulheres, meninas, indígenas, migrantes, refugiados, minorias (étnicas, religiosas e linguísticas), deficientes, idosos e doentes. Todos os que sofrem discriminação.

O que motiva a discriminação? A ideia de superioridade. O discriminador pensa que é superior por ser rico, ser homem, não ser indígena, ser brasileiro, não ser deficiente, ser jovem ou não ser doente. Enfim, quem discrimina pensa que o diferente deve ser excluído.

Como a exclusão separa, ela se opõe ao processo inclusivo que gera e mantém a vida: a união de átomos (fusão nuclear) e células (endossimbiose).

Em seu site, o Departamento de Física Nuclear da USP explica que a vida na Terra é mantida pela energia solar produzida por fusões nucleares. Inicialmente, as estrelas são formadas de hidrogênio e hélio criados no início do universo (Big-Bang). O enorme campo gravitacional faz os átomos de hidrogênio na estrela colidirem e se fundirem formando núcleos de hélio, que se fundem dando origem aos elementos mais pesados, até formar o núcleo de ferro. A estrela de ferro, se for suficientemente grande, pode sofrer uma enorme explosão, transformando-se numa supernova, que produz elementos com massa maior que a do ferro. Assim, o ferro e os outros elementos da Terra derivam de restos de supernovas e de estrelas mortas.

A união entre esses elementos estelares possibilitou o surgimento da água, que gera e mantém a vida na Terra. Sabemos que a água é composta por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, ambos elementos produzidos pelas estrelas. Assim, podemos afirmar que a água deriva das estrelas, assim como tudo aquilo que é composto por ela, como, por exemplo, nós humanos, cujo corpo é 70% água e 30% outros elementos também derivados de estrelas. Em outras palavras, a fusão entre os átomos produziu os elementos que geraram a vida.

Essa fusão também acontece entre as células.

As mitocôndrias, que existem praticamente em todas as células com núcleo, realizam reações químicas com as moléculas dos alimentos e com o oxigênio existente no citoplasma da célula. Nesse processo, as mitocôndrias produzem energia para si e para o restante da célula. Elas são “usinas de energia”, que, de acordo com a pesquisa da bióloga Lynn Margulis, surgiram a partir da simbiose entre uma pequena bactéria respiradora de oxigênio e outra bactéria maior (teoria da endossimbiose). Isto porque as mitocôndrias possuem DNA diferente do núcleo da célula e se reproduzem como as bactérias, ou seja, por estrangulamento. Elas eram bactérias predadoras, que invadiam outras bactérias e se reproduziam dentro delas. Como a invasão matava a bactéria hospedeira, a parasita somente passou a sobreviver quando começou a cooperar. Isto aconteceu quando a parasita começou a metabolizar o alimento capturado pela hospedeira, transformando-se em “usina de energia” para ambas. A simbiose foi tão benéfica que as bactérias começaram a se reproduzir ao mesmo tempo, dando a impressão de serem uma única célula.

Acontece que a endossimbiose não se restringe apenas à ancestral relação parasitária das mitocôndrias. Ela também ocorreu com os plastídios verdes, que são responsáveis pela fotossíntese das plantas e que possuem estrutura semelhante às de bactérias ancestrais. Essa relação simbiótica não se originou de uma invasão, como no caso das mitocôndrias, mas sim da alimentação. Algumas bactérias engoliram alguns plastídios, que resistiram à digestão e mantiveram, dentro da bactéria predadora, a capacidade de captação da energia luminosa, possibilitando a produção de energia para ambos. Como elas também passaram a se reproduzir ao mesmo tempo, tornaram-se uma única célula.

Assim, tanto no reino animal (mitocôndrias) quanto no vegetal (plastídios), houve a transição da violência (invasão ou alimentação) para a não violência (cooperação). Houve um diálogo vital, que fez emergir a consciência comum ou participativa. Esta consciência não violenta é a base de sustentação da vida do planeta. A cooperação ancestral está gravada em cada uma de nossas células. A vida exige cooperação. Ela é uma rede de interdependências. Ela é o diálogo, a interação, que possibilita a perpetuação da existência, ou seja, possibilita que haja algo ao invés de nada. Interessante, porém, é que a interação não violenta surgiu a partir da ação violenta. Do comportamento invasivo ou predador emergiu o comportamento cooperativo. As bactérias predadoras que cooperavam com a presa garantiam a continuação da sua existência. As que não cooperavam morriam junto com a presa. A evolução da vida segue a lógica de inclusão.

Apesar disso, os seres humanos seguem na direção contrária da vida, quando excluem a água de sua humanidade. Isto ocorre quando classificamos a água como recurso natural, como se pudéssemos nos separar dela ou existir sem ela. O absurdo disto “salta aos olhos” quando lembramos que somos 70% água. Ao tratarmos a água como coisa (recurso) abrimos caminho para tratar tudo o que é vivo como coisa. Daí se dizer que as pessoas são “recursos humanos”. Aonde isso nos leva? Brumadinho/MG e outros desastres mundiais patrocinados por negócios com esta visão.

O rompimento da barragem da mineradora VALE em Brumadinho/MG revoltou o país. Não apenas pelo grande número de mortes de pessoas ou pela morte do Rio Paraopeba, mas, pelo total descaso da empresa. Um documento da VALE de outubro de 2018, juntado na ação ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais em janeiro deste ano, comprova que ela, cerca de 3 (três) meses antes do desastre, sabia do risco de rompimento da barragem de Brumadinho/MG e de outras 7 (sete) barragens sob sua responsabilidade. O mais grave é que o documento estima o potencial de perda de vidas para cada barragem. Mesmo assim, a empresa aceitou correr o risco de morte de centenas de pessoas e do Rio Paraopeba, simplesmente porque era caro fazer alguma coisa para evitar o pior. Afinal de contas, pessoas e rios são coisas (recursos humanos e recursos naturais). Se coisas forem destruídas, basta pagar a conta e está tudo resolvido.

Curiosamente, a visão da água como recurso natural já foi superada na cultura que a criou. O catolicismo europeu, que havia defendido e disseminado a ideia de superioridade do homem diante da natureza, rendeu-se ao ensinamento de São Francisco de Assis. O PAPA FRANCISCO, na ENCÍCLICA LAUDATO SI (sobre o Cuidado da Casa Comum), alertou que os maus tratos dos animais atingem as pessoas, pois, “a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos”. Disse, ainda, que “quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade”. Em outras palavras, para o catolicismo atual, quem não respeita o Sol, a Lua, a Terra e o Rio como a um IRMÃO “é contrário à dignidade humana”. A lógica da exclusão também não é cristã.

As palavras do PAPA FRANCISCO há séculos são vividas pelos povos ancestrais da América, da África, da Oceania e da Ásia, pois, sempre tiveram um profundo respeito pelos antepassados. Aliás, o Dicionário HOUAISS explica que respeitar é “olhar muitas vezes para trás”. Quem “olha para trás” e se lembra da sua origem familiar, respeita os seus antepassados. Quem se lembra da origem da vida na Terra, respeita a água. Quem se lembra da origem da água, respeita as estrelas. QUEM SE LEMBRA, RESPEITA.

Hoje, Dia Mundial da Água, convido todos a se lembrar.

Somos água. Sem água, a vida não teria começado e nem continuado. Sem vida, não existiria povos, culturas, capitalismo, política, judiciário, conhecimento. Não existiria humanidade ou história humana. Muito menos a tão exaltada dignidade humana. Tudo o que é vivo tem a mesma origem: a água. Assim, tudo o que é vivo merece o RESPEITO DE UM IRMÃO porque teve origem na mesma MÃE ÁGUA.

Nesse contexto, o Dia Mundial da Água é o Dia Mundial da Fraternidade. É o dia de “olhar para trás” e lembrar da origem comum da vida: a água. Ver que tudo que é vivo é um irmão, portanto, o nosso destino é viver em comunhão (com união). “Olhar para trás” para “não deixar ninguém para trás”.

Sim! Hoje é dia de “olhar para trás” para reverenciar nossa origem comum e, então, “olhar para frente” e ver um futuro de paz. Porque paz se constrói com respeito. Sem fraternidade, nunca teremos paz. Sem a consciência da irmandade de tudo o que é vivo, não existe paz. Daí a forte ligação do dia de hoje com o primeiro dia do ano.

O dia 1º de janeiro é o Dia da Fraternidade Universal (Brasil) e o Dia Mundial da Paz (Mundo). Todos os anos, desde 1967, os Papas têm o costume de escrever uma mensagem para este dia. Para este ano (2019) o PAPA FRANCISCO disse que:

A paz é uma conversão do coração e da alma, sendo fácil reconhecer três dimensões indissociáveis desta paz interior e comunitária:

– a paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como aconselhava São Francisco de Sales – cultivando «um pouco de doçura para consigo mesmo», a fim de oferecer «um pouco de doçura aos outros»;

– a paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o atribulado…, tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que traz consigo;

– a paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante deste mundo, cidadão e ator do futuro.

A paz é uma conversão. Doçura consigo, atenção ao outro e responsabilidade pela vida.

Nesse dia de lembrar nossa origem comum na água, pergunto: Que crenças te impedem de ver as estrelas na água e a água em você? Que crenças te impedem de viver em paz consigo, com o outro e com tudo o que é vivo? Que crenças te impedem de “abrir os olhos” e ver a luz das estrelas dentro e fora de si?

Nesse dia sagrado, de início da Estação da Colheita (Outono), beba um copo d’água e sinta a sua doçura. “Olhe para trás”, sinta respeito pela água e reverencie a imensa família dos filhos da água. “Olhe para frente”, veja o mundo de paz que surge quando a fraternidade universal é vivida. “Olhe para si”, veja quem você realmente é e do que realmente necessita: ÁGUA – A IN(FUSÃO) DE ESTRELAS QUE SACIA A SEDE DE PAZ.

LAFAYETTE GARCIA NOVAES SOBRINHO – Advogado e Consultor de Inteligência